A Ricardo Reis, no Mar da Galiléia

Só dizem os deuses o que logo esquecem,
mas o jogo do céu é amplo e reto,
e cada lance é um coração aberto:


nele não dorme o que se fez desperto,
o eterno é agora e em si mesmo morre,
nunca houve rumo e todo sempre é incerto.


— Não creio, e rezo.

Um Sobrado, em Viçosa

Rente à terra, o meu céu,
qual rês ajoelhada,
menino a vigiar, de bruços, a arapuca
e as aves que alçam vôo das crinas dos cavalos,
mão que toca outra mão,
ou muro esfarinhado
que desce com o calangro e onde o sol
faz abrir a plumagem.


(Fui menino demais e sofri como os outros,
os que levam, descalços, seus burricos com água,
pouca esperança, farinha, rapadura e a tarde,
com tudo o que volta
— os bezerros,
os focinhos molhados dos bois
e os lacrimosos carneiros.)


O meu azul não se despenca no alto:
é feito de ramagens.
Foi sempre a sombra, no ar, desta chapada
vista de longe, no longe das boiadas,
e onde colho anualmente o solo,
para gastar de mim o meu branco excessivo
— cabelos, barbas, terno
de linho ou caroá e este sorriso
que entrançou as rugas no menino,
pois foi-me a vida
sempre a carne no amor.


Nos meus olhos, o feno de outros olhos
— do meu avô, já quase centenário,
a vacilar no arnês, a olhar os rebanhos
e aquele ano, em Camocim: canaviais
brancos, qual lembranças de moinhos,
casas à beira-mar, leves, de onde
a brisa poda o sol. Assim, na sombra,
em que ela esconde a carne noiva e alma,
a rede lava o calor, no embalo das varandas:
gaiola que contém jardins (são aves),
cesto que deixasse ver, além das vergas,
braçadas de cravos, o poente das mangas,
o jenipapo, terra
à espera que a plantem.


(Ainda sei chorar pelas éguas sem parto
e volto, pelas tardes, de lavar os cavalos,
vejo a carne estrelada dos avós, em seu claro
exílio da linguagem, as finas lãs do gado
e a pênsil vacaria, onde o clarão dos pássaros
— chamado madrugada —
me acolhe em seus joelhos.)




Naquele ano, em Camocim. Junto à areia molhada,
os meninos mariscam.
Ela salta na praia, roseirais nos joelhos,
sobe a serrania e, ao descer do cavalo,
inunda, além do verde da horta e das jaqueiras,
a casa,
o sobradão,
com o forno, a tina e a bulhenta capoeira,
onde eu a vi, velhinha,
enluarada ao sol,
escama e vaga,
limpa e rara,
como se murmurasse: Vê, não é
a morte alegre?


Abre o meu avô a grande arca,
vinda também de Rouen, onde a família
caça, sustenta a mão rendada,
cria espaços e galgos.
De seu pequeno pedir, desses vinhedos,
memória e pensamento do que passa,
os seus olhos, que dormem no desterro,
refazem a luz de anil, a rede jovem
com potros sem arreios — ai! pobreza
da fala na celagem que se fecha.




(O que esperamos ver passar, destas sacadas,
quase sem desejar a eternidade,
vai-se fazendo em nós, cada vez mais,
ausência de suspiro e pranto, ausência
de noite, no convívio
do olhar com a claridade.
O tempo é bom e o céu, apenas isto:
o que roçamos com o corpo
e floresce nas aves.
Que importa o eterno às crinas dos cavalos
e aos seus cascos?)

A Bem-Amada

Vem, na garupa deste burro em chouto,
um fraco deus, impaludado e sóbrio.
Cospe no barro,
no entanguido ventre que alimenta
os bezerros e os ermos
de um ralo capim, de alguma espiga.
Um escasso escarro
com o barro de um peito.


E, na saliva,
o caroá cardado de um sabor
de murici. O sol sobre as orelhas
do burro, vem num golfo balouçante
de cactos, canários e poeira,
assim, com a boca seca de rezar
e de aboiar, vaqueiro de si mesmo.


Rédeas? De corda. E por espora
o calcanhar que terra e pedras ara,
viúvo de alpercata, mais lanhado
do que o lombo curtido por cangalhas
do burro em chouto, com ilhais sangrados.


Traz nos dois cestos talvez
mangas, cajus ou aves amarradas,
peles de cabra, leitões, azeite ou raro
galho de roseira. Algum borrego
que criasse, pastor, na própria enxerga ?
Manadas de riachos que abrigasse
de um vento seco, ocre e carregado
de sol como a urina dos cavalos ?


Na garupa do burro, como se ofendesse
ao seu destino parco
ir sentado na palha.
Entre dias e dias, eriçados, ferozes
qual o olhar de um sanhaço,
traz um pouco nas cestas
do que canta por dentro
da limpa solidão. De um chão sem pastagens
foi-se, carregando o sonho dos regatos,
e os saltos sobre o verde,
e a caça aos lagartos,
e o que desejaram
os seus magros joelhos.


Não se morre, se morto
já nos demos por dentro.
Sobe no jumento
(como ele, no osso
e com moscas no berne),
a corda na cintura como se fora ao pescoço,
a coceira dos bichos-de-pé como a lenta
floração de asas
em galinha cativa.


Repousa em hospedarias,
entre o crupe e o cheiro
de porcos e de podre cestaria de pobres,
impaludado e espremido entre gente sem dentes,
que lava na gamela o tracoma dos olhos.
Mas, deus que se exila,
leva a brisa ao Egito,
nos punhos da rede.


Vai olhar, nos jacás, a sua carga
apoiada em samarras.
A fome na garganta,
volta à rede, enquanto, no compasso
dos cascos (vai no burro novamente),
como um cego às avessas, faz recentes
inverno e açude. Galinhas cacarejam
distante, mas agora vão com ele,
como os dedos morenos que cortavam
os renovos das árvores.
Com ele,
dela o rosto moreno
sobre o branco tecido, contra o branco
céu que reflete o barro, no poente.
Com ele,
um dia de chuva e um outro dia
embaralhados com os naipes do presente
— as flores sobre a rede; as mãos nas mãos,
os dentes trincam a cana, os dois na rede;
a solidão, o passeio, as goiabeiras.
Com ele, o anoitecer: a mão na mão,
entre flores, como dentro de roseira.




Babaçuais!
A água brota, inconsolável.
Segura firme a forquilha das cangalhas.
Vê as ondas de arroz que entrarão pelas portas,
os corpos lavados, a exasperada imagem
da jovem mãe que recua n'água. Chora
e vê
o gado.


Assim chega a Pastos Bons, Colinas ou Berlengas,
o neto de quilombolas, preados e labregos,
para erguer sua tenda, um mocambo mais magro,
de pau-a-pique e barro.
Descarrega as cangalhas,
esquecido da morte e dos jardins degolados
que a cercam, ferozes.
Abre os dois balaios
e deles, num retorno,
retira os dois meninos.


País meu
meu pai
meu par
meu parco alforje
baixinho canta
de dias e varandas.
Os tinguás pousarão
nos altos mamoeiros,
e virão vacas lerdas
e cabras. Há moscas sobre as merdas
que cheiram a capim, a mugido e a enfeites
de bandeirinhas,
de macaxeira assada, beiju grosso
e beijo


eternamente.

Diálogo em Sobral

— Como era o odor dos rosmaninhos?
— De alimpo mato, talvez.
— Do lagar e das pipas
de vinho nos malhaes.
— De broa e caldo grosso.
— Das tulhas para o milho.
— Ou do Minho.
— Talvez do aconchego da fuligem,
na casa negra de luz e cerco ardente
do frio, onde esperávamos.
— Talvez
da cama limpa, onde fomos gente.


— Eu cavei e podei, de rosto baixo
como o burro ou o boi, só mais faminto,
cheio de frio chuvoso, a rastros, todo
banhado em terra
e em urina podre.
— O funcho, a mangerona, a erva-doce,
que chamamos de anis, quase os esqueço,
esses nomes e as hastes de onde vinham,
perto da breve janela.
— Ai, não me esquece:
abria o dia com estas mãos que vês
tão marcadas do chão e da madeira
que lascava no eido.
— O boi, então,
só faltava comer na nossa mesa.


— Ao borralho, as castanhas tu assavas...
— O vento, o lume ou um madrugar no ventre
fez-me indagar (a tua mão suspensa
sobre o vaso de água-pé), o riso em mágoa:
"E os miúdos, se vêm?"
— E, assim, largamo-nos
para o Porto, rumo ao mar. Velas, o medo,
o enjôo e o galope vagaroso
de um céu que clareava.
— "Não temas, ó Maria"
(ou por Ana me chamavam?),
disseste, "não te ponhas pequenina".
— Não te falei na morte. Só pensava
na tijela do caldo, onde boiavam
a couve,
o calor
e a batata.




— Neste país sem orvalho, os nossos pés
rasgamos ainda mais no solo quente.
— Passamos fome.




— Roubamos
gado e terras.
— Crucificamos
escravos,
e por isso nos lembram.




— Vi, uma vez, o talco azulado das garças.
O arco das avoantes. O curimã nadando.




— Tonto de passarinhagem e mormaço, o menino,
enquanto o cego de pedir, a quem guiava, a farinha
comia à sombra, o menino
cheio de aves nos olhos.
"Dou-lhes comida e cavalo, venham comigo!
Venham!"
— E saímos a galope
— como os reis antigos,
a falconear os bezerros e as vacas prenhas,
com poetas e jograis, a rabeca na sela
do cego, e os jagunços de cabelos em cachos.
—Lembro-me bem do menino
que rapazola, sangraram.


( Haverá talvez um neto, ou um bisneto,
que não pense em mim a fazer rendas,
mas a cavalo, ao peito as cartucheiras
e o rifle na mão, com que atirava
sem apoiá-lo no ombro e a galope.
Este verá, na herança da lepra,
do rim corrompido e da tísica,
da prisão, da viagem e do querer amoroso,
que, atrás deste rosto corado e sem rugas,
deste olhar azul e destes seios gordos,
sonhei o latifúndio, o espaço, o amplo céu
que vim também fundar no outro lado da terra,
longe do que antes amei,


o melro, a canafístula, a tília, os casalinhos,
o verde gaio, o Ausente.)

Paisagem de Amarante

"Mas da lã fina e seda diferente..."
CAMÕES: Os Lusíadas, Canto IX.


E fomos para onde a relva era ainda de um verde
acastanhado e havia babaçus e um regato
magro como os bois que levávamos,
onde
o florido algodão depois plantamos.
Ela vinha,
e não usava bandós, nem tranças de sereia
dessas gravuras de mau talho,
que recebemos de longe,
de Lisboa, talvez. Também não tinha
a blusa de unicórnios e de heráldicas feras,
nem rosas e corações no vermelho do linho.
Trazia um pássaro inventado
no lábio inferior.
Sem saias e anáguas,
pintada de vermelho e jenipapo,
andava como a nhambuzinha,
apressada e sensível.




Sofreei o cavalo.
O céu rumo ao sol,
na tarde perseguida pelo tempo da ceia,
da gaita e dos lençóis.
Pôs-se a correr.
Viu-me! — bradei, e os companheiros,
com os laços derramados
no vento do galope,
fugimos atrás dela.
Arataiá!
Oh! Assim nunca
o breve tempo surja de tua formosura!
Volveu o rosto,
"banhada em riso e alegria",
alagada de lua,
do vinho da claridade.




E, hoje, nesta casa de Amarante,
senta-se à janela, na aragem do sol,
convive com os bilros,
borda, de olhar melancólico,
flores domesticadas
e paisagens com bois
( o mel ao sol desses dorsos curraleiros,
a azulega noite estrelada, as hastes sossegadas
do capim alto que vamos apartando
no rumo das águas, os buritis, os pássaros
da beira-rio, as vacas amojadas,
a boiada de que fui velame ou quilha,
berrante à boca, ouvindo, misturados,
mugido e aboio).




Eu lacei-a , parada,
o odor de pequi, a terra ganha.


Em nossa volta, o capim ensolarado.
O P i a u h y.
O plenilúnio das garças.
Este cantar de bugres
para o seu ventre: Ó mulher feliz,
quem fez em ti filho bonito como o sol,
cheiroso como a flor?


Daridari,
nua,
à garupa do cavalo.
Levava um corpo de quem espero a alma.




E, hoje, nesta casa de Amarante,
cata-me os piolhos do cabelo e da barba,
trinca as lêndeas nos dentes,
enquanrto deito a cabeça no seu púbis depilado.
Fala aos meninos, que saltam
das pranchas para o rio,
sobre a ordem de viver numa casa desleixada,
sobre a ordem de seu coração dividido
entre a maloca dos solteiros
e a rede para onde a trouxe, por amor e por caça,
e onde, hoje,
cantarola baixinho:
Kunhã nty
osasy uá! auá taá
omunhã ndé resé memby ipuranga
Uarasy iaué, sakuéba putyra iaué?

Hoje: Gaiola Sem Paisagem

Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.
Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na
pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas
mesquinhos e com frutos sem rumo.
Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a
beber água ao riacho! Como se importasse à causa humana ler os
jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos
a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para
conhecer o mundo, para saber que estou vivo.
Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos
enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a
árida abstração que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em
gravatas, por exemplo.

A Travessia do Rio Volta

concentrados e sós num ar de sumaúmas
mandiocais e córregos íamos na balsa
como quem vai para a horta como vão para o coro
meninas que louvassem a alva renda dos den
dezeiros e lavouras cruas de calor


um repouso de cana se a polpa cobrisse
de uma gordura casta essa cachaça triste
que sugamos do coco em outro dia de
lagosta e palavras algumas sobre a morte


mas agora é a magra companhia desse sujo branco
da roupa dos pobres e da lepra corrroendo
o encaixe das unhas o joelho e os lábios
mordidos num pranto de pálpebras sem espe
rança de chão sem manta e mãos de amor
para lavar o rosto de quem sozinho e rouco
e míope em nada toca


vamos num chevrolé e as longas pirogas
vão passado por nós e as folhas das mangueiras
e há quase uma recusa de beber o ar sem ser
num respirar de pranto pois tudo perdeu
essa infância sem nádegas e de umbigo herniado
(leve capim que uma boca insaciável rumina) tão pros
trada que se alimenta de um roçar com o rosto a terra
e que num gesto de cego a afinar o violino
me oferece frutas como se as colhesse
como quem recebe.

Rito de Iniciação

meu pai dizia as mangas que enverdeçam
para que o sal lhes dê um novo gosto
cortava o sol em fatias o sumo o rosto
sujava de luar de mate ou pouca
luz que fundeia na sombra da jaqueira


chegava à carne do fruto à rude juba
que arma em fera a pele do caroço


à margem do curral mergulho aberto
do tamarindo meu pai dizia fazes
o desgosto compões cada segredo
a cresciúma os ninhos nos alpendres
o adeus com flores os ombros dos mendigos
a sustentar a curva porta os cegos
a cavalo e os porcos nos açougues


o azul é rouco e teu meu pai dizia
este silêncio de viração furtada
outras monções com cheiro de goiaba




sabor só soturno soterrado
dá a manga o trotar o alaúde
meu pai dizia o sol é sal e o solo
nada cultiva em nós nem a descalça
morte rastro leve na farinha.

As Cousas Simples

A bicicleta deslizando no mosaico: a pedra,
que o joelho feriu e estância do pranto,
recebe agora os cascos leves
da cabra e do burrico
e o sonho breve
do menino a chorar no velame dos cabelos.


Que peixes como lágrimas, na lata com ferrugem,
trouxeste da cisterna para a areia?
Conhecias a morte ou tinhas esperança
de florescerem o verde, a rosa e a ametista
de suas carnes frágeis? E, hoje, quando choras,
que sonhas, que rebanhos semeias, e se ris,
que riso de pastor em tua face treme
e logo morre?


Não fui o jardineiro de um quintal sem húmus,
nem trouxe a água nas mãos para o animal ferido.
A corça não cacei, nem as ancas malhadas
das éguas açoitei com um ramo de árvore.
Cantavas para os bois, junto à cerca e ao riacho,
moías no pilão a farinha e o açúcar
com a castanha tostada e a carne de sol,
roías a solidão, no muro, ao mamoeiro
agarrado, nervoso, a sonhar com pavões.
Falavas de penas vãs à voz dos pássaros
e encostavas a fronte nos regaços
das amas. Embalavam-te canções.




Na tua infância
não houve arados
como os que rasgam
hoje esta carne,
nem as sementes
podres sonhavam
ventos e folhas,
espigas, flor.
Havia as noites
na copa branca,
ouvindo o choro
de um enterrado
pagão, sentindo
o chão mover-se
sob os ladrilhos
da cristaleira
negra, a teu lado.
Vias o pêlo
cobrir teus braços,
sentias, quente,
na mão o bafo,
eras um lobo
cheirando a lua,
ainda que humanos
fossem teus traços.


Então, a rede
vinha, e o embalo.




Que terror sonhar com o enterrado
que tecia o pranto sob o chão e a relva!
Chorava nas noites claras, ai, chorava
em encantado pranto, que essas brisas
levavam ao campo e ao canto das meninas.


Chorava um pranto lunar, de grilos no orvalho,
de frio de lima clara, de parido na terra
e vinhas à janela, rezar por seu silêncio
e dizer um seu nome, baixinho, sobre a vela.


Podes morrer em paz.
Agora, nem a chuva
poderá o teu sono
ofender, ó tristonho
menino que, enterrado,
choravas por um nome.


Também em ti chora um infante.
Ausculta o teu coração e sentirás o seu pranto,
saudoso da ramaria, do sol e dos muares.


Ah, menino, protege
o teu padrinho triste,


enterrado no chão
de um outro peito, triste


como um boi a mugir
e o focinho de um cão.




Conversávamos,
e a cadeira de vime rangia, enquanto o velho
passava a mão sobre o tempo em seus cabelos.
Havia dunas cruéis, pão e café.
Na praia, abriam as redes para os peixes.


Alguém falou: Estou cansado,
e recolheu um tubérculo da terra,
úmido e pobre — podre! — e o devolveu
ao chão amargo e à fome das formigas.


Uma palavra esquecida como um sorvo
de água bebida ou o nitrir de um potro,
Talvez rede, que forte era o mormaço,
ou Veneranda, ou o meu nome, ou mesmo
simples enfim que se transforma em adeus:
fez-se a vida suave e o tempo bom,
como a branca toalha, a mão que parte
na caçarola o ovo, e a colher
que toma a sopa e a conduz aos lábios.
Um minuto talvez, o tempo apenas
para passar a mão no pêlo limpo
de um cão enrodilhado, ou de morrer ¾
alguma cousa ergueu-se ao teu encontro,
asa ou veleiro, cabeça de mulher
que se reclina em teu olhar e deixa
o teu corpo amansar o seu desejo.
O sol abriu no céu um pasto claro
como se parte na mão uma romã.
Sentias o viver em teus cabelos,
em tua boca os dias como um beijo.
Entre éguas, açudes e mormaços,
tombaram o mundo e os deuses nos teus braços.
E um vento lunar, tropel de pássaros,
rasgou-te a face e te lançou, transido,
na varanda do êxtase.


E cansavas
os anos, tranqüilo, nos passeios,
sob o abrigo do cair das tardes
com que sonhavas, enquanto ¾ eras criança ¾
te levavam da chuva para o quarto
e a cama e um cobertor que aquecia
como a carne, um conhaque ou um simples pranto.






Na janela, olhavas.
Pombos, céu e cataventos.
Que sereias ouviste
em seu azul sem lápides
e da morte nos campos
sem ondas e imagens?
Que sereias ouviste
na janela, à tarde?
No entanto, olhavas.




A bicicleta corria no mosaico
do corte no jardim (a jaçanã aflita
saltava atrás dos grilos no capim, na base
da flor humílima).
Enquanto os pés giravam os pedais, violentos,
a leve quilha do sonho empurrava a paisagem
com seus sítios de sombra e as raízes da água.




Cuidavam da cozinha e da sala. Faziam
do leite o queijo e da infância a sozinha
dor de debruçar-se sobre a mágoa da mesa.
E, enquanto o velho falava de seu reino exilado
e a faca trinchava a carne macia como a terra
ou afiava as estacas e o cabo dos ancinhos,
sentias o deserto
ou choravas na rede, desamparado e menino,
os teus natais e essa febre e essa espera terrível
que a morte decepou
como a cabeça de um frango.


Ele não acordou, embora o esperasses
e fizesses da espera o centro de teu sonho.
Hoje, encostas a fronte na cadeira de lona,
como invadido de morte, e choras... choras
como a infãncia ofendida, com as mãos de antigamente
a sustentar o corpo que se desmorona.


Com ele colhias mangas,
ias ver os trens e as aves.
De súbito, o céu crescia
e inundava os olhos
e as tardes.
Batiam contra os telhados
as ondas de um céu
selvagem.


Vinham pela estrada, mansas
irmãs de asas nas faces,
a criar nas mãos as contas,
jumentos, vacas, cavalos
e carroças de tijolos
rasgando as tranças do solo.
Ele cantava e sonhavas
com tatuagens e faunas
cobrindo as costas e os braços
da estátua de pedra calma.
Querias o verde puro,
o hímen da vida intacto,
o fruto aberto maduro
na sombra agreste do galho,
e não este jogo triste,
em que a morte são os ases,
e estas fontes que devoram
os sonhos de nossa carne.


Ele tomava o teu braço
e fitava o sol,
calado.
Vergavam ao peso do azul,
pois seco era o mês,
as árvores.


Secos também, perdemos o heroísmo
e agora, sentados, chorando a orfandade,
esquecemos as pontes e a beleza dos lagos.
Diante de nós ficaram apenas a areia e as traves
ruídas do celeiro e as montanhas sem árvores.
Somos herdeiros de uma casa decadente,
cuja madeira apodrece, e as malhadas cabras
vêm tosquiar o pouco do capim que ali cresce.














Como afagar tua testa,
sem tocar na sua cabeça
antiga e longa, em constante
repouso, ermo e tristeza?


Como aceitar tuas mãos,
sem pegar nos dedos magros
que se cruzavam no peito
ou desatavam as amarras
que prendiam os pés das aves
e a ressaca dos cabelos?


Alberto, as mãos de Antônio
não tinham rugas, nem pêlos.


Teus olhos estão nos olhos
do velho, a boca na sua,
aquela mesma inocência,
o mesmo amor pelos trastes,
o mesmo corpo recurvo,
o mesmo queixo de quarto-
crescente, a mesma certeza
do gado a mugir no pasto.


Ah, velho! ah, menino! nasce
de um rosto a carne do outro.






Agora, longe as dunas e as tendas desatadas,
desejaria somente, ao sair da cozinha,
encontrar-te na área, conversando com ele
sobre rosas e navios, gelos, rinocerontes,
sentado em seus joelhos, abrandando os seus cabelos,
ou lascando a lenha para ver os rubros veios
e a dor da madeira.

Vigília

Quando as lágrimas vêm, em vão fugimos
do que em nós faz o amor, em vão tecemos
vestes para cobrir o corpo nu,
que se nutre do pranto, humilde e humano.
Fazemos nosso leito. A mesa pomos.
O rosto se derrama em nossas mãos.
Queremos repartir a fome e o sono.
Vivemos nossa espera, enquanto, mudos,
fluímos para o encontro e retornamos
à infância, mansa páscoa, frágil vime.
Não mais somos nós mesmos; somos mais
do que nós mesmos ou alguém mais puro,
um sonho de não ser, ah, sendo e amando.

Soneto de Natal

Como esperar que o dia pequenino ,
com a mesa, a cama, o copo, as cousas simples,
desate em nossas mãos os lenços cheios
de canções e trigais e ninfas tristes?


Menino já não sou. Como de novo
conversar com os pássaros, os peixes,
invejar o galope dos cavalos
e voltar a sentir os velhos êxtases?


A linguagem dos grãos, do manso pêssego,
a bem-amada ensina e novamente
sinto em mim o odor de esterco e leite


dos currais onde a infância tange as reses,
sorve a manhã e permanece neste
cantor da relva mínima e dos bois.

Vera Canta

Dissesse agora o sonho sobre o mar
em que garimpo as ondas e os luares,
saltimbancos de azul e alvos bordados
de touros, sóis e pãs descabelados,


compreenderias que ouço a tua voz
de avena clara e pão, que os bichos voltam
de suas solidões para o teu canto
e vêm pastar nesta planície enorme,


que te vejo na flor, na lã, no cacto,
sentada, interrogando as tuas mãos
e aquário, peixes, câncer.... lua e sol,


que não te crio para um sonho raro,
pois és bela, real, mais do que a fábula,
ó dinamene, ó macieira, ó prado!